terça-feira, 15 de setembro de 2020

Armadilha para turistas

 Armadilha para turistas

        Estava visitando a cidade de Florianópolis e tive a oportunidade de observar um golpe que me deixou abismado pelo nível de sofisticação do esquema e como devemos estar sempre atentos, ainda mais no Brasil, terra dos espertinhos. O esquema é relativo à venda de cotas imobiliárias. Fiquei tão intrigado com a situação que pesquisei um pouco mais sobre o tema e sobre pessoas que acabaram tendo prejuízo com o golpe.

     Pude observar que o esquema é montado nas cidades turísticas brasileiras. Há reclamações de pessoas que visitaram cidades como Caldas Novas - GO, Olímpia - SP, Barretos - SP, Porto Seguro - BA e Penha - SC.


        Primeiramente, vejamos o relato de uma pessoa que foi vítima do esquema (fonte: https://www.proteste.org.br/reclame/lista-de-reclamacoes-publicas/reclamacoes-publicas?referenceid=CPTBR00631882-24):

        "Boa noite.
        Com base no exposto abaixo, eu Rubens dos Santos Alves Filho e minha esposa Edimara, vimos por meio deste exercer nosso Direito de Arrependimento de Compra, dentro do prazo legal de sete dias, conforme previsto no Art. 49 do Código de Defesa do Consumidor e solicitar o cancelamento do contrato de compra firmado entre nós e o grupo WAM Brasil, em 23/03/2019, referente a compra da uma Fração/Cota: 23 do Apartamento: 302, do empreendimento Solar Pedra da Ilha, localizado na Rua Goiás, Praia da Armação do Itapocoroy, 669, Penha-SC, com o estorno integral de todos os valores pagos e contratados.
        Descritivo da Ocorrência:
        No dia 23/03/19, eu e minha esposa estávamos de passagem pelo balneário Penha-SC quando fomos abordados na rua para que pudéssemos conhecer o empreendimento Solar Pedra da Ilha, o qual se tratava de um hotel em construção no local, de modo a poder conhecer a rede de hotéis da empresa e ganhar um brinde.
        Após sermos conduzidos até o local, nos deparamos com um showroom de vendas completo com maquetes, apartamento decorado e alguns vendedores e atendentes. Fomos recepcionados por outro funcionário da Wam Brasil, que nós fez uma apresentação geral do empreendimento, perguntas socioeconômicas e onde sentamos e iniciou a apresentação do empreendimento, abordando as características do empreendimento, belezas naturais da região, pontos turísticos, como funcionava o sistema de cotas imobiliárias, suas vantagens, etc. Após nos conduziu até um apartamento decorado demonstrativo do empreendimento. 
        Só ai já havia passado quase uma hora de apresentação, então o vendedor chamou mais outra pessoa, agora uma “gerente comercial” para dar sequência da apresentação. A gerente se apresentou e repetiu mais uma vez uma série de perguntas de caráter socioeconômico e enumerou as diversas vantagens e possibilidades do novo empreendimento. Logo após sacou a sua calculadora financeira e disparou uma rajada de projeções de ganhos de capital, valorização do bem, projeção de rentabilidade, comparativos com outros investimentos, curva de retorno do investimento, descontos, parcelamentos, etc.         Após encher umas três páginas de cálculos e gráficos nos perguntou o que faltava para que pudéssemos fechar negócio e adquirir uma ou mais cotas do empreendimento. Respondemos que achávamos a proposta interessante, mas como estávamos apenas de passeio e não tínhamos saído com a intenção de fazer qualquer negócio desta natureza e, portanto não saberíamos avaliar com clareza se todas as informações que eles nos haviam prestado eram verídicas e consistentes e que antes de fazer fechar qualquer negócio gostaria de fazer uma pesquisa e traçar as nossas próprias projeções e estimativas e que num segundo momento, caso nós concluíssemos que o negócio atendesse as nossas expectativas, poderíamos voltar a conversar e negociar. E que precisaríamos no mínimo de uma semana para analisar todos os pontos.
        Como um ar de ironia e superioridade, a gerente respondeu que já havia feito este trabalho por nós e começou a traçar mais uma série de comparativos e projeções. Novamente nós agradecemos e respondemos que a nossa decisão de fazer um investimento não poderia ser baseada somente nos dados que o vendedor nos apresentava e que nós gostaríamos de chegar as nossas próprias conclusões com conta própria. Imediatamente ela me respondeu que aquela proposta era valida exclusivamente naquele momento e naquele showroom e que caso nós deixássemos o local e tivéssemos interesse futuro de fazer negócio, a negociação deveria ser feita por intermédio de imobiliária, com valores bem maiores e pagando todas as taxas de corretagem da imobiliária.
        Agradecemos novamente e dissemos que naquele momento, pelos motivos que nós já havíamos explicado, nós não poderíamos fechar nenhum negócio.
Então a gerente comercial pediu licença e saiu da mesa. O vendedor nos pediu alguns minutos para a impressão do voucher do brinde escolhido.
Enquanto aguardávamos, eram anunciados os “Novos Felizes compradores de cotas no Solar Pedra da Ilha”. 

        Na sequência a gerente retornou a nossa mesa com uma nova proposta e recomeçou as sua investida em nos vender cotas do empreendimento. Nós agradecemos e repetimos sucessivas vezes as nossas negativas e motivos para não fechar o negocio naquele momento, mas a gerente sempre saia da mesa e retornava com um proposta mais “atrativa” e reiniciava as suas investida para venda, e enquanto isso eram anunciados os “Novos Felizes compradores de cotas no Solar Pedra da Ilha”.
        Já haviam se passado praticamente três horas de muita insistência e tentativas de nos persuadir a adquirir cotas empreendimento, sem que o voucher do brinde fosse trazido e cansado de tudo aquilo nos levantamos para ir embora, então a gerente veio novamente com uma nova proposta, mais “atrativa” que as anteriores e reiterando que tal proposta era válida somente naquele momento e não haveria a possibilidade de fecharmos o negócio em um momento futuro.
        Já cansados mentalmente daquilo tudo, sem a possibilidade de analisar calmamente todos aqueles dados e projeções e sob a pena de perder todos os benefícios que estavam sendo ofertados naquele momento, aceitamos adquirir uma cota do empreendimento.
No aguardo.
        A compra foi referente a uma fração da cota Nº: 23, do apartamento 302, do empreendimento “Solar Pedra da Ilha”. O pagamento foi realizado em 7x iguais de R$ 570,00 no cartão de crédito + 72 x R$479,86 + 4x 50,00. Após fechar o negócio tivemos de assinar uma pilha de documentos previamente preenchidos, sem que tivéssemos tempo hábil de ler tudo o que constava neles.
        Após retornarmos de nosso passeio por Santa Catarina, realizamos uma vasta consulta referente ao empreendimento contratado, aos valores médios de diárias na região, as taxas de ocupação da rede hoteleira da região, aos custos de manutenção do empreendimento, as vantagens e descontos da Clube CIA, sobre outros empreendimentos semelhantes em construção nas proximidades, projeções de valorização, etc, e constatamos que a maioria do que me foi mostrado é baseado somente em suposições extremamente otimistas e fantasiosas e que em sua maioria não eram consististes e fundamentadas. Realizando uma busca nos sites de reclamação da internet encontramos diversas reclamações de casos semelhantes ao nosso pedindo o cancelamento do contrato.
        Após realizar a pesquisa, nos sentimos profundamente chateados e enganados, vitimas de um esquema inescrupuloso que visa coagir e persuadir pessoas sem interesse de investir no empreendimento a comprarem cotas sem que possam ao menos fazer uma prévia avaliação das vantagens e desvantagens do mesmo. Isso configura claramente uma conduta de enganação e ludibriação por parte do grupo WAM BRASIL.
        Com base no exposto acima, vimos por meio deste exercer nosso Direito de Arrependimento de Compra, dentro do prazo legal de sete dias, conforme previsto no Art. 49 do Código de Defesa do Consumidor e solicitar o cancelamento do contrato de compra firmado entre eu e minha esposa e o grupo WAM Brasil, em 23/03/2019, referente a compra da uma Fração/Cota: 23 do Apartamento: 302, do empreendimento Solar Pedra da Ilha, com o estorno integral de todos os valores pagos e contratados."


O esquema


         Tudo começou quando fui visitar a Praia Brava, em Florianópolis. No caminho para se chegar à praia há um mirante. Era um horário próximo ao almoço e paramos nesse mirante (detalhe importante). Outro detalhe importante a ser observado é que havia uns 5 ou 6 carros estacionados no mirante, porém não havia turista algum no local. É muito provável que esses carros sejam deixados parados no local para servir de isca. Eu só parei nesse lugar porque vi os carros estacionados. Daí já se observa que os caras pensam em todos os detalhes. Pois bem, ao parar no mirante, apareceu um rapaz oferecendo uma visita guiada a um empreendimento hoteleiro da Praia Brava. A justificativa dada é que a visita seria rápida, coisa de 30 minutos, e que o intuito era a divulgação do empreendimento por meio do boca a boca, além do oferecimento de um voucher com três diárias com excelente desconto caso fosse efetuada a visita naquele momento. Eu já tinha ciência de que não existe almoço grátis e que aquilo era um esquema, mas aceitei o convite para ver qual era a real da situação.

        Ao chegar no empreendimento hoteleiro, o rapaz mostra rapidamente a estrutura de piscinas, de restaurante, da sauna, das salas de reuniões e do saguão do hotel, após, um funcionário do hotel pergunta nome, CPF, profissão e renda mensal para preenchimento do voucher com o desconto. Daí já não resta dúvida alguma que é uma tentativa para ludibriar desavisados.

        Depois, a estratégia do esquema é uma leve enrolação, talvez para criar expectativa na possível vítima ou para fazer com que se sinta mais pressionada pelo tempo perdido. O funcionário do hotel diz que o consultor está atendendo outra pessoa e que em cerca de 15 minutos pode ser liberado para me atender. Como disse que não esperaria, na hora disseram que por sorte o consultor estava livre e viria imediatamente.

        Nisso vem um consultor: teatralmente simpático, camisa estilosa, todo divertido e cheio de querer ser engraçadinho. O consultor utiliza diversas técnicas de engenharia social para fazer um diagnóstico da possível vítima. Pergunta sobre gostos pessoais, profissão, origem, desejos e preferências diversas. No meu caso, o diagnóstico do cara foi um perfil família, então ele bateu na tecla da família por diversas vezes ao contar sobre como conheceu a esposa, sobre o filho etc.

        O consultor me levou até uma unidade de apartamento do empreendimento hoteleiro e passou a explicar sobre o conceito de multipropriedade, que é a aquisição de cotas de um quarto de hotel para que o adquirente faça o uso. Em um primeiro momento, não explica de modo profundo como funciona o sistema de cotas, mas prioriza mostrar o apartamento. O consultor mostra como é funcional e bem aproveitado o espaço do apartamento, como é bom o acabamento e os materiais escolhidos, como são bons os móveis e os eletrodomésticos, tudo pra agradar a possível vítima.

        Nesse vai e vem, já passou uma hora até que o cara terminou de apresentar o apartamento. A partir disso, o consultor apresenta a suposta história da família que criou o empreendimento hoteleiro e a história da Praia Brava, dizendo mil maravilhas sobre o local, como a limpeza da praia, a segurança e tranquilidade, a proibição de novos empreendimentos (que não sei se é verdade ou não), que o Guga e a Adriana Calcanhoto possuem apartamentos no bairro e qualquer outra suposta vantagem da região.

        Posto isso, após mais de uma hora, chega o momento de entrar na sala de negociação: pude observar a presença de oito adultos e, pasmem, uma criança com cerca de cinco anos. O circo é todo montado para que a possível vítima acredite que há mais pessoas negociando no local, porém, do relato de vítimas, verifiquei que é uma estratégia usual utilizar os atores para ludibriar os desavisados.

        Numa mesa mais afastada do canto, havia dois homens de meia idade vestidos com trajes sociais. Numa mesa mais ao centro, havia uma suposta vendedora e um casal de meia idade. Numa mesa mais próxima, havia outra suposta vendedora e um casal jovem acompanhado da criança. Todas essas pessoas conversavam sem parar, simulando a negociação e dúvidas sobre o sistema, conforme as conversas que consegui captar.

        A estratégia do consultor é prender a possível vítima com o discurso bonito das vantagens da aquisição das cotas e bombardear informações, vencendo a pessoa pelo cansaço mental. Como o brasileiro médio é completamente ignorante, é possível que não entenda muita coisa do que o consultor diz. 

        Após 1h30 de enrolação, finalmente veio a proposta: aquisição de 1/13 de um apartamento de cerca de 32m² do empreendimento hoteleiro, com um rodízio de utilização de 28 dias anuais, divididos em quatro semanas, sob regime de utilização via sorteio, sendo uma semana na altíssima temporada, 1 semana na alta temporada e duas semanas na média temporada (existe isso?).

        A incrível proposta era no valor de R$ 132.900,00 à vista, ou com opções parceladas. O consultor mostrou que era muito fácil adquirir uma cota. Era possível pagar um sinal de R$ 7.200,00 parcelado em até 10x, o saldo restante poderia ser financiado em 8 anos. A parcela inicial seria baixinha, com o pequeno detalhe de que o contrato previa correção de IGPM + 0,5%. Segundo o consultor, o IGPM vem sendo negativo nos últimos tempos.

        Após sanada minha curiosidade sobre o que era realmente a oferta, dei sinais de que estava satisfeito com a explicação e queria ir embora, pois estava com fome e já tinha passado o horário bom para almoçar. Nisso pude ver mais algumas técnicas elaboradas para ludibriar os desinformados. O Consultor se levantou para conversar com o "gerente". Após voltar, a vendedora da mesa central se levantou e, em voz alta, anunciou que o casal de meia idade era o mais novo proprietário de uma cota de apartamento, pediu palmas para os felizardos e abriu um espumante.

        Nisso, o consultor gritou em voz alta e de maneira teatral: "Esse ama a esposa".
Feito isso, disse mais algumas vantagens e maravilhas do empreendimento e reiterou como era fácil pagar a cota e como seria benéfica a aquisição. Detalhe, não haveria a oportunidade de estudar e calcular detalhadamente a aquisição. Era uma oferta somente para o momento, sob a justificativa de ser "injusto" para com os demais eu adquirir posteriormente tão benévola oferta.

         Como caguei para os novos argumentos, foi a vez da mesa do casal jovem se manifestar: a vendedora se levantou e em voz alta parabenizou os novos proprietários de uma cota de apartamento. Mais uma vez, o consultor que me atendi gritou em tom teatral: "esse ama a esposa".
Já cansado de tanta maracutaia e até assustado com a situação, fiquei mais uns 10 minutos ouvindo o consultor insistente e consegui me desvencilhar. No fim, o cara percebeu que eu não iria cair. Levantei e fui embora.

        A lição de tudo isso é que eu devo ter cara de bobo para tanta insistência por parte dessa turma toda, além de que perdi quase 2h do meu passeio. Porém, é bom para ficar esperto. Tem malandro em todo o canto e tem gente que cai nessa. Para quem tem a mente fraca, perde pelo cansaço e sai no prejuízo. As técnicas de persuasão são sofisticadas e tentam atacar o emocional da pessoa, seja pela pressão, fome, estresse, constrangimento.

        Aparentemente, o sistema de cotas imobiliárias não é ilegal, embora seja claramente desvantajoso para as pessoas que adquirem, a maioria classe média baixa. É um meio pelo qual esses empreendimentos imobiliários e hoteleiros utilizam para levantar fundos. Como as vítimas que adquirem são na maioria pessoas leigas, quem ganha é sempre quem vende esse negócio. Fiquem espertos quando foram visitar as cidades turísticas brasileiras por aí. Não existe almoço grátis (no fim até ganhei o voucher prometido, mas joguei fora, claro).